sexta-feira, 4 de maio de 2007

Mistério arrebatado

Não havia motivos suficientes para que Arnaldo acordasse disposto a cuidar ao menos sua higiene matinal. As dores de cabeça começavam assim que ele saltava da cama e abandonava seu lençol xadrez, ainda quentinho e revestido de ácaros, amontoados há quase dois meses. Os poucos móveis da casa eram oriundos de seu primeiro casamento, que teve fim após a descoberta de uma infidelidade. A mulher de sua vida, à época, o traia com o primo dela, um treinador de jiu-jitsu, oito anos mais novo. Professor universitário, de uma faculdade renomada, Arnaldo era o tipo de mestre distante, que viajava nas aulas de Filosofia e deixava os alunos absortos, não somente pelo teor das obras dos gloriosos pensadores que citava, mas pelas suas roupas de comunista desbotadas e pelo invariável par de tênis sujo, revestido por uma mancha, provavelmente vinda de alguma sopa que ele deixara escapar do prato, e que mudava de cor a cada aula.



Entre os demais professores, ele raramente era percebido. Chegava sempre atrasado e saia quinze minutos mais cedo. No ponto do ônibus, por distração, perdia a condução uma, duas vezes, chegava a ficar sozinho na rua. Aproveitava o tempo para sorver deliciosamente cada um seus cigarros. Em casa, ficava até a madrugada lendo Trotsky, Lênin, embriagado mais pela solidão e amargura que pelos copos de uísque.




Arnaldo não percebia, mas Ana - uma aluna aplicada, que tinha crises depressivas quando tirava menos que dez nas provas mais temidas pela turma - era a única a notar sua presença. Evangélica e extremamente acanhada, ela só usava saias na altura do joelho. Sua debilidade, desalento e alarmante brancura lhe davam uma forte característica adoentada. Ao contrário da maioria dos CDFs, sentava-se na última carteira da sala. Fazia segunda chamada, mas não encarava a apresentação de um seminário. Tudo para não chamar atenção. Estremecia ao imaginar que, por ventura, as atenções fossem dedicadas a ela.




Somente no segundo ano da faculdade Ana resolveu soltar a voz. Suave, baixa, nasal, tartamuda, teceu o primeiro comentário de sua vida para uma platéia tão grande. Habituou-se a fazer estudos bíblicos todas as noites com seu pai, um viúvo-taxista-aposentado, e somente com ele conseguia se soltar mais um pouco. A garota gerou polêmica ao discordar do único professor que jamais havia sido contestado. Ele nunca admitiu críticas. Estudantes eram criaturas sub-humanas e não teriam propriedade suficiente para discutir tête-à-tête com ele. Arnaldo retrucou com criticas ácidas. Menina tola. Quem ela pensa que é para me interpelar? Professor estúpido. Quem ele pensa que é para dirigir-se a mim com tantas injúrias?

Ana saiu aos prantos corredores afora. A própria frieza não impediu Arnaldo de dar continuidade à lição com ares de superioridade a qualquer tipo de intervenção ou opiniões opostas da turma.

Entretanto, aquela noite foi cruel para Arnaldo. Pensou em pedir desculpas a Ana na noite seguinte. Fumou dois maços de cigarros. Desta vez, misturou vodca a outras bebidas destiladas.

Ana havia escrito uma carta para o professor. Mas o envelope nunca chegou às mãos dele. Ela iria entregar após aquela aula, que fatalmente terminou em puro constrangimento. Na manhã do dia seguinte, a dor de cabeça de Arnaldo foi agravada pela notícia de destaque na rádio local. A menina fora morta por um assaltante, enquanto esperava que o pai lhe apanhasse. No conteúdo da carta, o amor platônico comedido pelo fundamentalismo do pai. Aquela jovem, apesar de pura, estava grávida de desejo. O mistério de seus pensamentos pecaminosos jamais foi revelado. Sua lascívia, juntamente com sua vida, acabou sendo arrebatada por forças superiores.

Myllena Valença



Viva a sensatez de Juninho Pernambucano!

Podem me chamar de louca, antipatriota ou me adjetivar ao seu modo discordante. Mas sinceramente nunca vi a Copa do Mundo como um acontecimento que mereça tanta paralisação. Minha gente, por favor! Um evento esportivo capaz de modificar a rotina do Mundo, os horários de trabalho. Certo que a economia e o turismo ganham muito com o feito, e tals, mas vejam um exemplo que me deixou absorta: um conhecido meu, juiz de Direito, pediu a tabela dos jogos à secretária dele para saber se deveria ou não marcar uma importante audiência – pelo menos para o pobre cidadão que esperava há meses a solução para sua causa. Absurdo! Mil vezes absurdo! Por que, então, o mundo não parou os trabalhos para assistir ao 11 de setembro? Ou por que não será decretado feriado mundial no dia do julgamento de Suzane von Richthofen?

E tem mais: cogita-se que o salário da apresentadora Adriane Galisteu é de R$ 500 mil, vale duas Ana Paula Padrão. O gordo salário da apresentadora global Angélica, parece-me, passa dos R$ 350 mil. A top Ana Hickmann ganha R$ 5 milhões por ano. Pff! Diferenças revoltantes, pois Deus sabe o quanto a jornalista trabalhou seus neurônios e as madrugadas que teve de abandonar o sono para informar com responsabilidade. Pior que isso? Um salário de um jogador de futebol. PQP! Já trabalhei 40 horas seguidas para cumprir minhas pautas em três estágios. Não queiram saber o quanto ganhei – vergonhoso, e infinitamente desproporcional às horinhas de treino e remuneração do jogador Ronaldo. E nada de zombarias do tipo “Ah, não queira se equiparar a um fenômeno”. Igualo-me, sim. Não vejo distinções profissionais. Todos têm sua função social.

Tenho uma professora doutoranda. Não tem ninguém próximo a mim que estude mais do que ela! Caso isolado ou não, seu salário não passa dos R$ 5 mil, e em dois empregos. Já o craque Ronaldinho Gaúcho, o mais valioso no mercado do futebol, tem um passe de R$ 133 milhões. Ronaldinho também encabeça a lista dos jogadores que mais faturam durante o ano. Ao todo, o brasileiro soma nada menos que 23 milhões de euros. Desculpem, mas não consigo achar isso normal. Acredito que o conhecimento é muito, mas muito mais importante que o dinheiro, mas não consigo entender o porquê da disparidade salarial entre os que superam os limites do corpo e os que superam os limites da mente!

Taí, mas até que alguém do meio falou algo sensato a respeito disso tudo: “Futebol é o esporte coletivo mais individual que existe” - Juninho Pernambucano.

Myllena Valença

*Publicada originalmente em www.mimeographo.blogspot.com, em junho de 2006