Me chamo Alba e estou feliz por ter chegado, por milagre, aos 40 anos. Quero que vejam minha história como uma forte lição de vida. Nasci e fui criada na roça, no município de Serrita, no Sertão pernambucano. As circunstâncias me tiraram daquela cidade quando eu tinha três anos. Primeiro, porque minha mãe, Blanca, faleceu no dia do meu aniversário de um ano. Depois, porque meu pai, uma alma covarde, acabou fugindo, acossado pela própria covardia, desamparando a mim e aos meus irmãos. Éramos cinco irmãos. Cada um com um pai diferente. O fato de mamãe nunca ter se casado obrigou cada um de nós a ser levado para um destino diferente.
Dizem que sou fruto de um milagre, pois minha mãe chegou a tentar interromper a gravidez. Entendo suas razões. Queria ter evitado que mais uma de suas crianças fosse posta no Mundo para sofrer. Ela era enferma. Tinhas problemas no coração. Enfartou quando foi expulsa do seu miserável emprego. Morávamos todos no quartinho dos fundos, cedido a duras penas pelo proprietário da Fazenda Esperança. Saímos de lá por causa da mulher dele, uma senhora esquizofrênica que passou a ter ciúmes da esplêndida beleza de minha mãe.
Mamãe tinha cabelos verdes e longos. Seu corpo não fora deflorado pelas gestações. Teve todos os homens aos seus pés, mas o excesso de ingenuidade sempre a fazia cair nas garras de um mau caráter que a abandonou.
Minha avó, Nívea, tinha a mesma doença de mamãe e já havia perdido o marido, um prestamista trinta anos mais velho que ela, assassinado a pedradas ao tentar cobrar uma dívida a um cangaceiro.
Minha avó só soube da notícia dois dias depois do crime, quando o cangaceiro resolveu deixar o cadáver na porta da casa dela. Meu avô estava revestido em uma lona preta. Por cima dele, uma carta quase indecifrável relatava o profundo arrependimento daquele homem da caatinga. Dentro do envelope, uma ínfima quantia em dinheiro foi seu único consolo na viuvez. Minha avó não agüentou o fim trágico do marido e da única filha.
Depois disso, algumas famílias da região se compadeceram de mim e de meus irmãos. Nunca mais revi nenhum deles. Fiquei sob os cuidados de Dona Tonha, uma lavadeira que tirou longas férias depois de que completei oito anos. “Estou velha. Se quiser comer, tem que trabalhar”, resmungava. Mas o irmão dela passou tomar conta de mim. Dava-me tudo. Em troca, eu somente fazia seu jantar, lavava e passava suas roupas.
Os anos se passaram e eu era destaque no colégio de freiras, cuja mensalidade era paga por ele. Eu sonhava em ser professora. Meu tio, tão sonhador quanto eu, que foi durante anos meu pai e melhor amigo, planejava meu ingresso na melhor universidade da Capital. Ele era o único a me defender das maldades de Tonha, a quem nunca chamei de mãe.
Mas uma vez fui surpreendida no meio da noite pela violência do meu tio. Havia sido tomado pela embriaguez e por uma força diabólica. Tonha atribuiu a mim a fuga do irmão naquela tarde de verão escaldante. Sabia da paixão que ele mantinha enrustida. Disse que fui ingrata aos anos de dedicação dele. Que não entendia como eu dispensara tamanha bondade. Não sabia ela a forma violenta que ele tomara meu corpo, fugindo logo depois, para todo o sempre e nunca mais.
Somente vinte e cinco anos após o ocorrido é que voltei a falar. Preferi fechar-me para todos como meio de proteção - ou de vingança.
Em quatro anos, serei professora de Literatura, foi a primeira frase que balbuciei após os longos anos em silêncio. Fiquei muda em decorrência do trauma. Optei por me enclausurar neste minúsculo quarto de paredes mofadas. Habituei-me a viver trancafiada, limitando-me a ler e reler livros velhos e usados, comprados com o aluguel da garagem que Tonha deixou de herança. Estou derramando, hoje, as primeiras lágrimas de felicidade de toda minha vida. Passei no vestibular e vou ingressar na faculdade.
Myllena Valença
terça-feira, 12 de junho de 2007
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