Quando ele me encontrava e pagava um Guaraná, eu me sentia a pessoa mais importante da terra. Ele mexia no meu cabelo e dizia que eu já estava enorme, e linda. Repetia pela trigésima vez a história daquela tarde em que eu matei os pintinhos coloridos comprados na feira, e achava a maior graça nisso. “Você apontava pro bicho morto e me chamava para ver”, contava às gargalhadas. Ele era como um membro da família que não estava comigo – pensava eu – por ser importante demais para isso. Um semi-Deus que me pagava guaranás e ria de pintinhos.
Essa é uma das poucas histórias que guardo como se tivessem acontecido duas horas atrás. Lembro também que tinha sobre ele um medo que se misturava ao orgulho, à vergonha, ao amor que eu não sabia se era correspondido. Constrangimento por não estar presente em sua vida. Ódio, porque ele não estava presente em minha vida.
Entre uma mistura inesgotável de sentimentos, eu tenho um que se sobressai: o remorso sobre-humano de não conhecer o passado e a intimidade daquele querido estranho. O que realmente lhe causava medo? Gostava de pimenta? Havia quebrado o braço quando criança? Suas notas no colégio eram melhores que as minhas?
Jamais falei sobre meu pavor às provas de química, sobre meus amores; jamais discutimos nosso gosto por literatura ou por doce de leite. Ele não me ensinou a dirigir nem a gostar de música clássica ou rock; não assinou meus boletins, não me explicou sobre aquecimento global. Não esteve por perto para me proteger, nunca brigou para me defender. E quanto mais eu penso, uma coleção de nãos se espicha sobre mim.
Ele foi um rio que passou em minha vida. Tenho seu sangue, mas não compartilhei sua memória para, assim, perpetuá-la.
Naquele dois de janeiro, ele esteve tão longe quanto poderia estar.
Hoje, incrivelmente, está aqui.
Não me espelhei em você. Você não me deu grandes orgulhos. Sou sua parte mais importante, e você, querido estranho, estará sempre em mim.
Myllena, filha de Anito Valença
sexta-feira, 1 de maio de 2009
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