O que dizer de uma pobre criatura que nasce após o oitavo mês de gestação? Trauma, na certa! Especula-se até hoje em minha família que não havia um ser mais esquisito do que eu recém-nascida. Verde, sem unhas ou sobrancelhas, um verdadeiro Gremlin, sem tirar nem pôr. Imagino que os quarenta e dois dias que amargurei naquela incubadora da maternidade devem ter deixado conseqüências que, felizmente, perduraram apenas até minha adolescência. Cresci consciente de que não era um indivíduo normal. E os cuidados excessivos de minha mãe reiteraram a idéia de que eu era mais frágil do que qualquer criança da minha idade.
Rememoro dois traumas em especial que merecem destaque:
Trauma 1
Sempre que a família ia à praia, minha digníssima mãezinha ficava apavorada ao me ver perto do mar - ao menos que estivesse grudada a ela. Todo aquele envoltório de terror me fazia fantasiar durante horas sobre a existência dos animais nefandos que poderiam existir naquele mundaréu d’água. Imaginava as possíveis maneiras que o mar encontraria para me arrancar da areia e me levar para junto daqueles monstros terríveis sem que ninguém percebesse.
Conseqüência: odiava as aulas de natação e não cheguei a freqüentar aquela via-crúcis mais de uma vez. Aos 22 anos de idade não sei nadar, mergulhar, ou seja, sou hidrofóbica. Conselho? A comum intervenção dos adultos: "isso não pode!", "não faça isso!", inibe o processo de conhecimento da criança, e como ela poderá ter o senso de criação, crítica e avaliação das coisas?
Trauma 2
Esse não tem nada a ver com a redoma em que me colocava minha mãe, mas com o terrorismo orquestrado por um parente contra minha pessoa. A primeira vez que ouvi falar sobre aquele assombro foi quando um primo completamente cruel, seis anos mais velho, contou com requinte de detalhes (inclusive, tiro o chapéu para seu poder de persuasão) sobre a existência de um mefistofélico homem barbado, alto, forte, que perambulava pelo mundo na busca incessante de um fígado novinho para degustar. E pior: se a criança gritasse durante a captura do órgão, ele a levaria para todo o sempre e nunca mais, sem dó, e a menininha indefesa (no caso, eu) não seria jamais encontrada. Esse bicho era o famoso e temível Papa-figo.
Resultado: qualquer homem barbado me causava sérios transtornos, o que fez de mim, mais uma vez, uma criança completamente traumatizada – e excluída dos outros pirralhos. Quer pior ainda? Associei o Papa-figo ao pobre Papai Noel, coitado! A figura que me foi apresentada do bom velhinho era a cópia fiel daquela besta adoradora de fígados. Morro aos cem anos e não esqueço das noites infernais de Natal, quando eu implorava a minha irmã que me cedesse um lugarzinho em sua cama para eu não dormir sozinha. Contudo, ainda passava a noite em claro, gelada, esperando só a hora de Noel chegar – felizmente acabava adormecendo. Arrumar a casa inteira, comprar roupa nova e preparar uma ceia especial por causa do dia do velho barbado, pançudo e diabólico? Eu, hein! Era demais!
Como se não bastasse, tive hepatite na mesma época da descoberta. Meu primo, que não perdia uma oportunidade de me atormentar, aproveitando-se de minha já conhecida fragilidade, disse que a enfermidade era proveniente do Papa-figo, que havia levado embora um pedaço do meu órgão! “Por sorte, ele não levou suas entranhas por completo”, consolou-me. Quanta maldade! Como eu afundava dia após dia em decorrência da minha imaginação fértil, procurei uma amiguinha da escola para desabafar! Put’z, que droga de idéia foi aquela! Não sabia eu que a trama se espalharia na 2ª série inteira e que todos, outra vez, me olhariam como uma menina tão estranha quanto todos os bichos do mar, os comedores de fígados...
Agradeço a recuperação do trauma a uma tia postiça. Ela confessou que Papai Noel simplesmente nunca existiu, contradizendo todos os depoimentos de minha irmã, que garantiu veementemente ter pego em flagrante aquele ser das trevas no ato da entrega do presente, na noite de 24 de dezembro.
Myllena Valença
domingo, 29 de abril de 2007
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