Entre os demais professores, ele raramente era percebido. Chegava sempre atrasado e saia quinze minutos mais cedo. No ponto do ônibus, por distração, perdia a condução uma, duas vezes, chegava a ficar sozinho na rua. Aproveitava o tempo para sorver deliciosamente cada um seus cigarros. Em casa, ficava até a madrugada lendo Trotsky, Lênin, embriagado mais pela solidão e amargura que pelos copos de uísque.
Arnaldo não percebia, mas Ana - uma aluna aplicada, que tinha crises depressivas quando tirava menos que dez nas provas mais temidas pela turma - era a única a notar sua presença. Evangélica e extremamente acanhada, ela só usava saias na altura do joelho. Sua debilidade, desalento e alarmante brancura lhe davam uma forte característica adoentada. Ao contrário da maioria dos CDFs, sentava-se na última carteira da sala. Fazia segunda chamada, mas não encarava a apresentação de um seminário. Tudo para não chamar atenção. Estremecia ao imaginar que, por ventura, as atenções fossem dedicadas a ela.
Somente no segundo ano da faculdade Ana resolveu soltar a voz. Suave, baixa, nasal, tartamuda, teceu o primeiro comentário de sua vida para uma platéia tão grande. Habituou-se a fazer estudos bíblicos todas as noites com seu pai, um viúvo-taxista-aposentado, e somente com ele conseguia se soltar mais um pouco. A garota gerou polêmica ao discordar do único professor que jamais havia sido contestado. Ele nunca admitiu críticas. Estudantes eram criaturas sub-humanas e não teriam propriedade suficiente para discutir tête-à-tête com ele. Arnaldo retrucou com criticas ácidas. Menina tola. Quem ela pensa que é para me interpelar? Professor estúpido. Quem ele pensa que é para dirigir-se a mim com tantas injúrias?
Ana saiu aos prantos corredores afora. A própria frieza não impediu Arnaldo de dar continuidade à lição com ares de superioridade a qualquer tipo de intervenção ou opiniões opostas da turma.
Entretanto, aquela noite foi cruel para Arnaldo. Pensou em pedir desculpas a Ana na noite seguinte. Fumou dois maços de cigarros. Desta vez, misturou vodca a outras bebidas destiladas.
Ana havia escrito uma carta para o professor. Mas o envelope nunca chegou às mãos dele. Ela iria entregar após aquela aula, que fatalmente terminou em puro constrangimento. Na manhã do dia seguinte, a dor de cabeça de Arnaldo foi agravada pela notícia de destaque na rádio local. A menina fora morta por um assaltante, enquanto esperava que o pai lhe apanhasse. No conteúdo da carta, o amor platônico comedido pelo fundamentalismo do pai. Aquela jovem, apesar de pura, estava grávida de desejo. O mistério de seus pensamentos pecaminosos jamais foi revelado. Sua lascívia, juntamente com sua vida, acabou sendo arrebatada por forças superiores.
Myllena Valença
5 comentários:
Amores impossíveis não existem, ou amamos ou amamos, a diferença está em até onde podemos chegar.
Os valores morais pesam na hora de escolher. As vezes é difícil ceder e optar por algo que implique mudanças. Se queremos muito algo e não há posssibilidade de ferir ninguém com má fé, então devemos seguir a diante. Se vamos ferir alguém porque não há escolha é melhor que seja com a verdade.
Segredos todos têm, o difícil é lidar com eles. Essa platonicidade implica o enfrentamento com relação a quem ama e é amado ainda sem saber. Tem uma hora que não dá mais...e o amor se declara por si só. Sei lá.. é tão louco, tão natural vc ama e não quer fazer mal a ninguém....nem acabar com o casamento de ninguém. Sou contra a infidelidade. Não aceito isso, então aos platôninos e amores anônimos eu desejo resistência.
Que beleza! Agora você tem um blog só seu. Há vida inteligente na internet.
Beijos!
Olá, Myllena, estou me tornando seu fã !!! Parabéns !!!
Correção na 2a. linda : disposto a... / cuidar ao menos de ...
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